quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A Sentinela - Radamathys

Havia caminhado por dias. Desde que abandonara sua vida clerical após a ordenação, ele pensava sempre na natureza de sua missão. Ser o protetor, o guerreiro de Deus e a primeira linha de defesa na batalha eterna entre as forças da luz e das trevas, era uma tarefa pesada demais. Seu espírito atormentava-se ante as dúvidas. Teria sido, ele, a escolha ideal. Não havia tido tempo de conversar com o velho padre. E pensava que era um contra-senso usar meios violentos para defender a humanidade das artimanhas de Lúcifer.

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Aturdido em meio às dúvidas e incertezas, buscou o único lugar onde se sentia seguro. Uma Igreja. Estranhou por que mesmo passando por tantas outras, sentia-se impelido a entrar naquela em específico. Era uma construção imponente e bem antiga. Estilo gótico, com uma nave ampla e elevada. Num lugar de destaque, o altar ornado com arabescos finamente trabalhados em ouro puro e pedras preciosas, resplandecia com um brilho hipnótico e caloroso. Aquela igreja era uma relíquia.

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Naquela hora da noite, a igreja estava praticamente vazia. Sentou-se num dos bancos do fundo. Não queria chamar a atenção e nem ser perturbado por nenhum fiel tardio. Precisava meditar e buscar uma resposta clara de Deus. Abriu seu pequeno evangelho e começou a ler as determinações escritas pelo próprio Cristo e as características dos escolhidos. Buscava ali, a resposta para sua hesitação.

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Estava tão absorto e concentrado que nem notou a presença do velho frei franciscano que o observava atentamente de um canto escuro da nave. Mas, num instante, em sua mente ele pode ver o espírito luminescente que irradiava uma luz forte, porém aconchegante. Levou o olhar até a direção da luz e pediu ao velho homem que se aproximasse.

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Ainda mergulhado na escuridão, o velho frade aproximou-se e quando ia perguntar como ele o havia visto ali, observou o pequeno livro, antigo e desgastado, nas mãos do jovem. Estava escrito numa língua estranha a ele. Mas reconheceu de imediato os escritos da capa: “O EVANGELHO DO PENTECOSTES”.

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De imediato ele soube quem era aquele homem tão jovem e porque ele o descobrira escondido nas sombras. Ele era “uma Sentinela”. Nunca antes havia encontrado um desses homens. Sabia que existiam e conhecia sua missão árdua na terra. Agora entendia porque aquele jovem tinha o semblante tão carregado e sofrido. Ele trazia, gravado em si à fogo, a mais penosa missão que um ser humano poderia ter. Sem dizer uma única palavra, aproximou-se dele e tocou sua fronte abençoando-o e fez uma prece baixinho; pedindo que Deus o confortasse e protegesse.

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O Jovem, por sua vez, percebeu que o toque daquele velho o banhava com uma luz alaranjada e afastava todas as suas dúvidas, tensões e tristezas. Sentia-se aquecido e docemente reconfortado pela prece feita em silêncio; mas que ele podia ouvir claramente. Enquanto o frade se afastava para o interior da sacristia, observava encantado aquela luz maravilhosa irradiada por ele, banhando toda a igreja. Percebeu, então, que aquele era um homem santo.

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Quase que no mesmo instante em que tinha esse pensamento, sentiu uma forte dor no peito e um cheiro horrível de fezes tomou conta de tudo a sua volta. O odor insuportável o sufocava. Sabia o que aquilo significava: A presença de um demônio. Olhou em volta e, na escuridão, não podia perceber nada. Levantou-se e tocou sua arma. A "Lâmina de Miguel", feita do mais puro aço e com partes da ponta da lança de Longinus (O romano que cravou sua lança em Jesus, ao fim da crucificação), era a arma principal contra esses seres infernais. Como espíritos, eram imortais. Mas o poder da lança de Longinus, banhada pelo sangue do Nazareno, era o suficiente para arremessá-los de volta aos abismos infernais.

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Saiu cauteloso da igreja e, ao chegar ao pátio, observou que uma velha senhora sentada num dos bancos sorria para ele e o convidava a sentar-se. O que ele via, no entanto, era algo completamente diferente. De pé atrás da velha e com os braços pousados em seus ombros, uma figura o fitava com olhos gelados. Uma imensa massa negra rodeava a velha e o banco. Tão densa que nada a transpassava. Era como olhar para um grande buraco negro. No centro daquele negror infinito, uma figura sinistra com seis enormes asas negras esfarrapadas e o corpo envolto em chamas que, apesar do brilho intenso, não refletiam ou iluminavam a massa negra e nem emitiam qualquer calor. Sua face era um emaranhado de chamas envoltas com trapos pútridos envolvendo sua boca. Podia-se perceber apenas os três olhos inquisidores que o estudavam com uma atenção quase terna: Era Radamathys - O Dominador do Fogo.

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Quando Lúcifer foi exilado no inferno pelo exército celeste, Radamathys, servia com Miguel. Mas discordou do Pai por não ter perdoado Lúcifer, que sempre fora seu favorito. Repreendido, pelos irmãos, resolveu deixar o céu e habitar entre os homens. Aqui, trabalharia para conseguir o perdão para seu amado irmão renegado.

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Em sua mente, o jovem padre ouvia a voz do demônio o convidando para sentar-se. Não havia motivo para medo ou luta. Queria conversar. Em seu treinamento psíquico, o jovem fora apresentado a todos os demônios e anjos. Aprendera suas fraquezas e virtudes, como derrotá-los e como usar sua arrogância contra eles mesmos. Sabia que Radamathys era um demônio dúbio, corrompido pela proximidade de seu irmão malévolo, ele praticava o mal. Mas, a longa convivência com a humanidade, o fazia também praticar o bem em várias ocasiões.

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Sua vida havia sido árida e difícil, pobre e vivendo numa casa velha e embolorada; desde a tenra infância, tinha pesadelos horríveis onde hordas demoníacas o atacavam e o obrigavam a combater ferozmente. Lutando por sua vida. Um homem de aparência forte e destemida o orientava naquela carnificina aparentemente sem sentido. Geralmente esses sonhos, acabavam com ele acordando desesperado, suado, gritando pela mãe e com os lençóis banhados em urina.

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Sua mente infantil, não era capaz de assimilar o que acontecia. A visão daquelas criaturas disformes e horrendas e de todo aquele horror era demasiado incompreensível para ele. Hoje, bem mais velho, compreendia que seu espírito era projetado em uma viagem astral e era treinado no éter, para cumprir a missão a que estava destinado. E essa missão era simples, e ele a executava com maestria: Combater o mal e todas as suas manifestações.

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Quando na adolescência resolveu freqüentar o seminário e tornar-se um padre, seus pais recusaram-se a autorizar seus estudos e o espancavam com o intuito de mudar seu pensamento. Mas, ao contrário, isso tudo só o impulsionava mais para seus objetivos. Ele não conseguia imaginar que força ou que vontade era aquela que o movia rumo ao sagrado.

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Ao completar 18 anos e alcançar a maioridade, matriculou-se no seminário e formou-se com louvores. Foi ordenado padre e, no dia da ordenação, recebeu uma visita de um velho sacerdote. A muito, ele já não sonhava mais com os combates e lutas encarniçadas. Na verdade, nem se lembrava mais daqueles dias distantes. Porém, ao ver aquele velho padre, com mais de oitenta anos, imediatamente o reconheceu. Era a figura forte, estranha e destemida que aparecia em seus sonhos todas às noites naqueles pesadelos. Com um gesto seco e quase imperceptível, o velho apontou para um canto da igreja e disse: “Chegou à hora de você me substituir. Você sabe, em seu íntimo, que a jornada será difícil e penosa. Mas se confiar em Deus triunfará”.

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Dizendo isso, entregou-lhe uma velha bíblia desgastada e já bem danificada pelo tempo. O jovem padre olhou o objeto raríssimo e percebeu que era escrito em aramaico antigo. Um idioma a muito esquecido e falado nos tempos de Jesus. Estranhamente diante de seus olhos os símbolos, antes incompreensíveis, descortinavam-se para ele em palavras; depois frases e finalmente em sentenças completas. Espantado, percebeu que podia ler aquilo facilmente.

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Era um evangelho nunca antes revelado pela igreja e, do qual, nunca havia ouvido falar: “O Evangelho do Pentecostes”. Segundo o texto, fora escrito por todos os apóstolos no dia do Pentecostes em uma espécie de transe divino coletivo. O texto trazia meios, regras e descrições de como Lúcifer usava seus demônios e almas perdidas na terra para ampliar e fortalecer seus contingentes infernais. E como desviava ou destruía, almas caridosas de seu caminho rumo aos céus. E continha, ainda, meios e sinais de como reconhecer esses agentes infernais e combatê-los com toda sorte de rituais, armas e técnicas. Lá, havia também um depoimento do próprio Jesus, já ressuscitado, explicando aos apóstolos que Deus enviava sempre um homem ou uma mulher a cada geração para tornar-se uma arma divina contra as ações de Lúcifer e suas hordas demoníacas na terra. Um ser humano que, treinado e armado, abdicava de sua vida terrena para exercer essa função divina.

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Virou-se para o ancião cheio de perguntas. Mas o que viu o desalentou. O pobre velho estava morto. Seu rosto sereno e tranqüilo, espelhava a certeza do dever cumprido e da alma redimida. Afastou-se do velho, deixou os parentes e amigos procurando por ele na igreja lotada de fiéis, seminaristas e autoridades da Igreja e mergulhou no mundo. Sabia que nunca mais voltaria a pisar numa igreja, como sacerdote, ou a rever seus pais e amigos. Sabia que sua missão era solitária e deveria cumpri-la com empenho até encontrar outro como ele a quem passar o cargo.

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Agora, ao caminhar pelas ruas por entre a multidão agitada e sem rosto, via tudo com um ponto de vista diferente e sombrio. Bastava um olhar mais atento para que enxergasse além das aparências e formas mundanas. Ele podia ver as almas de todos que circulavam pelas calçadas, avenidas e meios de transporte. Percebia todo o movimento espectral ao redor delas. Aquele era seu campo de batalha, o inimigo estava sempre preparado e a espreita. Todos podiam ser alvos e dependiam dele. Desde o início dos tempos, a guerra entre o bem e o mal era travada no submundo e, nesta guerra, ele era a primeira linha de defesa da humanidade.

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