O quadro era, no mínimo estranho, uma garota friamente assassinada na diante de toda a família; o pároco local e um alto membro da diocese presenciam o fato e não se manifestam. Tanto a família quanto os membros da igreja parecem apoiar e acobertar o assassino. Apesar do sangue e de inúmeros vestígios na cena do crime; nada há que indique a presença de outras pessoas no local. Contudo, os vizinhos relataram que a casa foi invadida por um homem sozinho e que aparentava ser um clérigo.
A jovem fora decapitada na cama, como corpo coberto por excrementos e manchas. Era acometida, havia vários meses, por uma doença misteriosa que se manifestara após um acidente de carro que sofrera. O pai morrera neste mesmo sinistro. Desde então, vivia em hospitais e com a mãe na casa dos avós. A polícia estava atônita e sem pistas. Prendera todos pelo assassinato; mas não conseguia apontar o culpado. Tudo indicava uma conspiração motivada por fanatismo religioso. A mãe e os avós eram membros assíduos e conceituados na comunidade local e os sacerdotes envolvidos, queridos e renomados no clero nacional; com grande influência política e pareciam ter total apoio dos altos escalões da Igreja. Havia até um emissário do próprio Vaticano acompanhando o processo. Algo totalmente incomum. Mesmo as provas, coletadas em abundância no local do crime, não indicavam conclusivamente a participação deles. A arma do crime não fora encontrada e a lâmina usada não tinha similar na casa. Tudo apontava para “o visitante misterioso”. No entanto, eles continuavam negando que havia alguém a mais na casa. Os investigadores estavam convictos de que escondiam algo, mas não conseguiam provar nada.
Os dias passaram; e o furor da imprensa só fez aumentar a pressão pela condenação de todos. Apesar de relutante, a promotoria estava inclinada a não pronunciá-los; mas foi surpreendida quando os defensores designados pela Diocese apresentaram confissões completas e com declaração de culpa de todos. Era bizarro. Sem alternativa, uma audiência rápida foi marcada e os réus foram condenados: Trinta anos cada. Os avós e os clérigos morreriam na prisão, pois tinham uma idade avançada, a mãe sairia quanto tivesse setenta anos. Era muito triste. A essa altura, todos já haviam se convencido de que eles eram inocentes e protegiam outra pessoa. Mas, não havia como estabelecer a presença de outra pessoa no local e alguém deveria ser punido pelo crime.
Anos se foram, a cidade esqueceu o acontecido sufocada por inúmeros outros crimes bárbaros. Como o promotor previra, a mãe, foi a única sobrevivente. Seria libertada em dias. A imprensa, não tocara no assunto e nem se interessaria. Afinal, ninguém queria saber de um caso acontecido a tantos anos; já que novos escândalos brotavam a cada instante e vendiam muito mais. Apenas o velho promotor, já aposentado, ainda buscava a solução para o caso tão cheio de esquisitices; aquela morte estranha e o sacrifício inútil daquelas pessoas boas.
Após a condenação dos réus, mantivera o caso aberto por anos. Tinha sempre uma equipe voluntária investigando incessantemente. Buscava o homem estranho que invadira a casa. As perguntas eram muitas e continuavam sem respostas: Quem era o estranho? Por que nada havia sido descoberto que indicasse sua presença na casa? Por que a Igreja e a família tinham tanto interesse em acobertar tudo? E, principalmente, por que sofrer tanto por algo que não fizeram? Contava apenas, agora, com a boa vontade daquela mulher dizimada pelo sofrimento e mortificada pelos anos atrás das grades. Queria saber porque nunca recorreram, nunca pediram condicional, nunca revelaram o que acontecera naquele quarto e nem porque a filha havia sido assassinada tão barbaramente. Esperava que após tantos anos, ela revelasse o segredo antes de ir para o túmulo.
No dia marcado para a soltura, ele a esperava na porta do presídio. Sabia que ela não teria para onde ir. A casa onde morava foi tomada pela prefeitura devido aos impostos atrasados. Não tinha parentes vivos nem herdeiros. Tinha apenas a si. Quando as portas se abriram, viu que uma velha e curvada mulher, com um olhar vazio e sem vida, saía acompanhada de um homem de roupas clericais. Imediatamente, reconheceu as vestimentas como pertencentes ao alto escalão. Não era muito religioso, mas aquele caso fizera com que lidasse com os “graúdos” da Igreja e sabia como se vestiam. Não saiu do carro. Ficou observando à distância, seus instintos gritavam; agora tinha certeza do que sempre suspeitara: uma trama para acobertar alguém em altos postos da Igreja.
Quando entraram num carro grande e partiram, ele os seguiu de perto. Cruzaram toda a cidade e chegaram a uma área pouco habitada, povoada por mansões e chácaras de famosos. O carro entrou numa delas e ele estacionou na esquina. Nem precisava aproximar-se para saber onde eles foram: A residência do Cardeal.
Ficou observando por horas, o veículo que trouxera a mulher partira apenas com o motorista. Saiu e caminhou até os jardins da imensa propriedade. Identificou-se a um segurança e perguntou quem era a mulher que entrara na casa. A resposta foi mais esclarecedora do que surpreendente: “É a tia do cardeal que veio do interior para morar com ele”.
Tudo se confirmara.
Voltou àquela casa todos os dias; vigiou por meses. Até que numa tarde, viu a mulher caminhando pelo jardim com uma enfermeira. Saiu do carro, atravessou a rua e a chamou. A acompanhante a pegou pelo braço e a dirigiu-se para o interior da propriedade. A velha senhora, com gentileza e resignação, tomou a mão da outra mulher e disse-lhe algo. As duas se separaram e a velha dirigiu-se ao homem que parecia ansioso e a esperava junto ao muro. Um cumprimento, um sorriso estranhamente familiar e um olhar compreensivo foi tudo o que o velho promotor notou. A idosa, contudo, disse-lhe: “Eu fui avisada que você viria e autorizada a contar-lhe o que aconteceu para que acredite e tenha paz”.
Provavelmente estava senil, mas era a chance que ele tinha de saber o que acontecera com a garota e com todos os envolvidos naquela trama inexplicável. Sentaram-se num banco próximo aos canteiros de flores e ela começou a contar tudo: “Minha filha morreu no desastre de carro com o pai (meu amado esposo)…” Agora tinha certeza de ela estava senil, pensou.
Sem parecer perceber, ela continuou: “… a “coisa” que morreu naquele quarto não era minha filha. Era algo que tomou o corpo de minha filhinha e que atormentava a vida de nossa família e de todos que encontrasse”. Os olhos embaçados pelo tempo enchiam-se de lágrimas conforme lembrava dos acontecimentos: “ … Antes do acidente, ela era uma menina alegre, gentil e estudiosa. Muito esperta; era querida pelos coleguinhas, pelas professoras e por todos na vizinhança. Depois que fui buscá-la no hospital, tudo mudou. A princípio, pensei que era devido ao trauma. Levei-a aos melhores psiquiatras, psicólogos e a vários médicos. Ninguém parecia encontrar algo errado nela. Mas tornara-se má. Maltratava a mim e a meus pais, caçava e matava animaizinhos na vizinhança; uma vez a peguei esfolando um gatinho vivo e atormentava as outras crianças: Era terrível”.
As lágrimas agora eram incontidas: “Levei-a ao padre José, que a batizara, e era nosso amigo e conselheiro há anos. Quando chegamos na igreja, parecia agitada e mais rebelde do que de costume. Me batia e gritava, quando o padre aproximou-se; ela cuspiu em seu rosto e começou a gritar coisas horríveis. Fiquei tão envergonhada que corri dali. Padre José veio atrás de mim e disse que talvez soubesse o que estava acontecendo; e que iria me ajudar. Dias depois, ele apareceu lá em casa com um homem vindo da Diocese. O homem conversou comigo por algumas horas e pediu para ver minha filha. Quando chegamos ao quarto, ela já nos esperava: estava nua e defecara sobre a cama. Com as mãos, apanhava as fezes, esfregava pelo rosto e corpo e atirava em nós. Ao mesmo tempo gritava para que o padre a possuísse. Fazia gestos obscenos e ria alto”.
O promotor parecia não acreditar no que ouvia, sua expressão de incredulidade era tão evidente que a velha mulher sorriu e ameaçou levantar-se. Um impulso de curiosidade o fez segurá-la, gentilmente, pediu que continuasse. Ela relutou um pouco, mas prosseguiu: “… O próprio Bispo me visitou e disse que autorizara um exorcismo. Minha filha estava possuída por um demônio e apenas o ritual antigo e raramente executado hoje em dia, seria capaz de libertá-la. No dia marcado para o ritual, O padre José trouxe o exorcista até nossa casa. Subimos ao quarto e a encontramos naquele mesmo estado deplorável: estava coberta de fezes, havia urinado em todos os cantos do cômodo e gritava coisas inacreditáveis. Os padres começaram orando e jogaram água benta sobre ela; ordenavam ao demônio que se apresentasse e que abandonasse aquele corpo. Gritavam ordens, rezavam, jogavam mais água benta; aquilo durou horas. O demônio apenas gargalhava e debochava de tudo. Quando eles jogavam água benta, ela virava-se de costas e esfregava a água que escorria em suas nádegas rindo. Tomou a bíblia e o terço de um dos padres e masturbou-se com eles; bem ali: no meio das fezes e na frente de todos”.
A mulher agora escondia o rosto com as mãos e soluçava baixinho como se lembrar daquilo tudo a fizesse reviver o horror. Os olhos vermelhos e injetados denunciavam que, para ela, aquilo tinha ocorrido mesmo. O promotor estupefato pelo relato incrível apenas perguntou: “Por que a mataram?” Um sorriso iluminou o rosto devastado pelo sofrimento e ela suspirou: “Nós não a matamos…” Antes que ele pudesse dizer algo, a velha senhora prosseguiu seu incrível relato: “… Num determinado momento, ela pareceu ficar mais alta do que era realmente, avançou para os padres e, segurando um em cada mão, ergueu-os pelo pescoço como se fossem bonecos de trapo. Enquanto os sufocava, ela gritou: ”Querem saber meu nome?” “Querem saber quem sou? ”Nesse momento, a voz fina de menina, alterou-se para um tom grave e poderoso de homem. Um odor forte e acre tomou conta do quarto e nos sufocou, sentimos como se algo pesado e incrivelmente grande estivesse sobre nós. Fomos atirados ao chão e a ouvimos gritar: ”Eu sou ABIGOR (*), comandante de sessenta legiões infernais. Acham mesmo que podem me vencer com essa pantomima ridícula?”
A velha continuava relatando o que acontecera e sua voz quase sumia ao relembrar o que passara: “…Quando ela disse isso, olhei para os padres buscando ajuda; pensei que, como o demônio tinha se anunciado, eles conseguiriam expulsá-lo. Mas, o que vi, me deixou ainda mais em pânico: Eles estavam com medo e choravam como crianças assustadas. Naquele exato instante, percebi que estávamos perdidos e que todos morreríamos ali…”
Enquanto proferia essas palavras, uma lembrança pareceu iluminar seu rosto e os olhos pareceram retornar ao antigo brilho da juventude; agora sorria e secava as lágrimas. Mais aliviada continuou: “…Nesse momento; vi um homem jovem; vestindo roupas de padre entrar no quarto. A simples presença dele, naquele quarto, foi suficiente para afastar a sensação de peso que nos prendia ao chão. Conseguimos nos levantar e antes que pudéssemos dizer qualquer coisa, ele aproximou-se de nossa filha. Ela estava totalmente transfigurada. Seu rosto era horrível: olhos vermelhos e escuros; a pele coberta de excrementos; as mãos pareciam mais com garras de algum animal selvagem. Quando ela percebeu o homem que se aproximava, largou os padres e recuou até a parede. Parecia ter medo. A mesma voz ameaçadora gritou para o estranho:” Estou aqui pois Nosso Pai permitiu. Tu não podes me tocar Sentinela. A alma dela já partiu e apenas o corpo me pertence. E dele, faço o que quiser“. O homem pareceu não se importar com o que fora dito. De dentro da túnica, retirou uma espada estranha e, num único golpe, decepou a cabeça de minha filha…”
O promotor, incrédulo e espantado perguntou “o por que?” de nunca terem falado sobre isso e de terem protegido o assassino da filha deles e a Igreja. Ela paciente, como se falasse com uma criança, continuou sem dar importância ao que ele perguntara: “…Por instantes, depois dele ter decapitado nossa menina, ficamos imóveis observando a estranha cena. Meu pai avançou em direção ao jovem para agredi-lo, mas se deteve no mesmo instante. Do corpo inerte da menina, uma gosma preta e fétida brotava e erguia-se à frente de todos. A gosma tornou-se uma criatura disforme e horrível. Falava apenas com o estranho que acabara de entrar; perguntou como ousara ir contra o Pai e jurou que iria destruí-lo. O jovem apenas limitou-se a sorrir e disse: “Seu tempo aqui acabou. Nosso Pai ordena que deixe esse mundo e retorne ao seu lugar. A hora ainda não chegou…” A criatura pareceu inconformada e investiu contra o homem. Em suas garras, trazia uma ameaçadora lança. Sem demonstrar qualquer emoção, o jovem o deteve e o subjugou, facilmente, com a espada; deixando-o de joelhos. Enquanto o imobilizava, recitou um texto de um livro que parecia muito antigo e que carregava consigo. Era uma língua estranha, não era latim; pois essa ela conhecia bem das missas. Ela nunca ouvira aquilo antes. Tudo que podia falar era que a estranha criatura desapareceu em meio a gritos de dor e o ar, antes carregado com um fedor sufocante, agora cheirava a rosas…” Sem parar, a velha mulher continuava seu relato com a propriedade das testemunhas confiáveis: “…Ele chegou até mim, segurou minhas mãos e, olhando em meus olhos disse: “Sua filha morreu junto com seu esposo naquele acidente. O que de lá retornou, era apenas um receptáculo para um demônio poderoso e cruel. Seu objetivo era apenas causar tristeza e desacreditar a fé que vocês têm em Nosso Pai Maior. O mal foi vencido e vocês passarão por uma provação terrível agora. Contudo, nada posso fazer quanto a isso”. Dizendo essas palavras, e da mesma forma que apareceu, sumiu do lugar. Os padres, mesmo relutantes, depois de um tempo acabaram explicando quem era aquele jovem. Diziam que era alguém considerado como uma lenda, um mito. Algo que muitos acreditavam ser fruto da fantasia de fanáticos. Sua identidade era desconhecida até pelos altos escalões do Vaticano. Tudo o que se sabia, era que um homem havia sido escolhido diretamente por Jesus para expulsar os demônios mais poderosos que tentariam viver entre nós. Pessoas puras e escolhidas antes mesmo de nascerem, vinham sendo escaladas geração após geração, para combaterem nessa cruzada solitária contra o mal. Eram conhecidos pela denominação de Sentinelas”.
O velho promotor pensou que toda sua vida fora desperdiçada nas ilusões fanáticas de uma velha senil. Disfarçando sua irritação, levantou-se e disse que partiria. Nunca mais retornaria a incomodá-la e desejava que, algum dia ela, superasse o que acontecera. Sem demonstrar qualquer aborrecimento, a mulher levantou-se e sorrindo, entregou ao velho um pequeno pacote; “Ele disse que você não acreditaria”. Dizendo isso, foi embora.
Ao desembrulhar o pacote, o promotor encontrou um gravador e uma fita. Correu para o carro e ligou o pequeno aparelho. Instantaneamente, uma voz animalesca e cheia de ferocidade encheu o ar a sua volta, ao fundo, gritos de terror e pânico eram ouvidos. A voz dizia: “…Estou aqui porque Nosso Pai permitiu. Tu não podes me tocar Sentinela…”
Um arrepio de medo percorreu todo seu corpo.
(*)Demônio comandante de 60 Legiões do Inferno, Deus da Honra e da Glória, diz que na batalha do juízo final ele ira derrubar muitos anjos antes de cair sobre a glória de Miguel Arcanjo. Foi um mítco feiticeiro ou negromante, considerado pelos antigos como Gênio Infernal, uma espécie de Demônio da Guerra, e um comandante dos exércitos de Satanás.É tido como detentor do todo o conhecimento da arte da guerra e de todas as guerras do passado, do presente e do futuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário